quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Embora Doa ...

Abri os olhos, apesar de tudo estar nublado à minha volta conseguia facilmente perceber que aquela não era a minha cama, nem o meu sofá. Debaixo das minhas mãos sentia algo áspero. Olhei para elas e agarrei um pouco daquele chão, tentando perceber o que seria aquilo. "Será terra?", pensei. Era de uma cor castanha alaranjada, uns pedaços duros que, ao serem apertados se desfizeram e escorreram através da minha mão, tal como areia de uma pequena ampulheta.
Ao longe, comecei a ouvir alguns sons. No início imperceptíveis, mas ao longo do tempo, foram-se tornando fortes, cada vez mais fortes. Eram explosões, tiros, gritos.Entravam pelos meus ouvidos e ecoavam na minha cabeça mas, apesar disso eu continuava calmo. Era como se fosse apenas mais um dia, nada de anormal.
Levantei-me. Agora já nada estava nublado apesar de tudo se passar numa velocidade mais lenta que a normal. À minha volta estavam homens fardados. Vestiam fatos esverdeados com capacetes da mesma cor e tinham armas.Eram dois grupos, de frente uns para os outros e gritavam palavras que eu não conseguia entender. As suas faces transbordavam de sofrimento e tristeza e nos seus olhos havia um brilho especial. Ao olhar com mais atenção pude ver que as suas famílias, os seus amigos e todos aqueles que amavam estavam espelhados neles.
Comecei a caminhar. Passava pelo meio deles mas pareciam não me ver. Só quando estava no meio de toda a confusão me apercebi de que já estavam a disparar. O som que provinha das armas era quase insuportável, mas não tapei os ouvidos, nem sequer abandonei a calma que me envolvia desde o início. Olhei uma das balas que passavam à minha frente com interesse. Rodopiava, como que cortando o ar. Segui atentamente a sua trajectória até embater contra o corpo de um dos homens. Ele, que até ao momento parecia forte e indestrutível, tal como todos os seus companheiros, era agora frágil, um alvo fácil para aquele pequeno pedaço de chumbo. O pequeno objecto perfurou a sua pele, levando-o a soltar um grito, que foi abafado pelos barulhos à sua volta. Naquele local, perto do seu coração, formou-se rapidamente uma mancha vermelha. Vi-o cair de joelhos, estava a chorar. Também as pessoas espelhadas nos seus olhos choravam, agora. Mães e filhos abraçados, as suas roupas negras, terra...
Segui o meu caminho. Pela primeira vez reparei numa cabana cilíndrica feita de madeira fraca e folhas secas. Inspeccionei-a com o olhar. Perguntei-me uma e outra vez se não seria levada pelo vento, se este começasse a soprar. Como não tinha janelas, resolvi contorná-la e, do outro lado encontrei a única abertura existente, grande e sem porta.
Lá dentro jaziam dois corpos, um homem e uma mulher. Ao lado destes, quase invisível, estava alguém encostado à parede agarrando as pernas com força e encostando a testa às mesmas. Pressentindo-me, levantou a cabeça. Era uma criança. Os seus olhos estavam vermelhos, tal como o sangue que vira lá fora e chorava. Mergulhei no seu olhar profundo. Mostrou-me todas as suas memórias, como se tratasse de um filme: desde os momentos felizes que passara com os pais até ao momento em que os viu morrer.
De repente tudo mudou. Arrepiantemente, o tempo voltou à sua velocidade normal; o barulho furava-me agora os tímpanos, obrigando-me a tapá-los; não conseguia respirar pois o medo sufocava-me e, imitando aquela criança, sentei-me e chorei fortemente.

* * *

“A guerra continua no Iraque. Nas últimas 24 horas morreram mais de 30 pessoas nos ataques que ocorreram no...”
Acordei ao som da voz da bonita locutora da televisão. Como som de fundo ouvia os tiros e gritos da filmagem que passava no ecrã. Tinha adormecido no sofá.
Endireitei-me, tentando lembrar-me do sonho que me tinha levado a esta sensação incómoda de insegurança. Desisti após uns instantes e olhei para o relógio.
19:30h
Lembrei-me do jantar que tinha combinado com os meus colegas e sorri.
Peguei no comando e carreguei no botão para desligar, mas as pilhas estavam gastas: Que azar!
Levantei-me e aproximei-me do aparelho. Antes de o desligar olhei o ecrã. Uma criança olhava a câmara, rodeada de dois corpos que jaziam mortos.
Pressionei o botão do ecrã e a imagem desapareceu, deixando apenas um aperto estranho no meu coração.
Peguei nas chaves e dirigi-me à porta, fechando-a depois de sair, esquecendo aquele sofrimento.

Porque Às Vezes, Todos Nos Fazemos Indiferentes